sábado, 9 de janeiro de 2010

Uma quadrilha de Rubem Fonseca condenado à liberdade em Sartre

“Um homem não pode ser mais homem do que os outros, porque a liberdade é semelhantemente infinita em cada um”.
Jean-Paul Sartre

“Não há fatos, apenas interpretações”.
Friedrich Nietzsche


O homem está condenado a ser livre, afirma Jean Paul Sartre, portanto se a vida não tem, inicialmente, um sentido determinado, já que não existe um deus que o determine, então nós, como indivíduos e sociedade, necessitamos criar o sentido da nossa própria vida. Por este motivo, estamos condenados à liberdade.

A vida nos obriga a fazer várias escolhas possíveis. Podemos criar ou destruir. Nada nos obriga a escolher uma coisa ou outra. Mas ser livre significa que somos nós, e só nós, os responsáveis pelas escolhas que fazemos.

Botarmos a “culpa” de tudo em um “Deus” ou “Deuses”, ou em simplesmente algo que acreditamos ser superior a nós mesmos, mostra apenas nossa incapacidade de assumir a responsabilidade de nossas próprias decisões. Não há desculpas ou justificativas, e sim uma incapacidade de lidarmos com as conseqüências de nossos próprios atos.

Vemos claramente a incapacidade de assumirmos as conseqüências de nossas ações no conto escrito por Rubem Fonseca, Feliz Ano Novo, no conto pode-se constatar que os marginais, buscam em seus atos de crueldade uma justificativa, no entanto é claro o fato de que eles estão conscientes de suas próprias ações.

Observa-se na citação do critico Deonísio da Silva, como é realizado o ritual de violência no conto de Fonseca.

“Se matar é condição para viver, que ambas as ações sejam realizadas em grande estilo. No caso, os atos em si mesmos, morrer e matar, são revestidos de uma roupagem filosófica. Misturando aforismos, clivados por atrapalhes do cotidiano, os bandidos declinam uma especial condição de vida: para viver é preciso matar.”
(1983, p.68)


Somos completamente livres para realizar nossos atos, e qualquer tipo de justificativa criada para amenizar nossas ações, nada mais é do que má fé, ou seja, uma maneira de mentirmos para nós mesmos.

A linguagem vulgar usada no conto Feliz Ano Novo é uma maneira de demonstrar o nível cultural e a classe social das personagens, sofridas, que tiveram poucas oportunidades na vida, e usam esta desculpa para justificar os atos. “Nós estamos sozinhos, sem desculpas", alega Sartre, o homem não pode desculpar sua ação dizendo que está forçado por circunstâncias ou movido pela paixão ou determinado de alguma maneira a fazer o que faz.

Podemos verificar no conto em questão, que suas personagens envolvem-se no ato de má fé, tentando justificar a violência hedionda cometida, usando como justificativa a classe social miserável, o péssimo estado em que vivem e a falta de cultura social, violência esta que em alguns momentos nos remetem ao clássico de Kubrick, Laranja Mecânica, usando um nível de brutalidade assustador chega a ser surreal a maneira caricata que o autor trabalha a psicologia das personagens.

Com a descrição de Paulo Menezes, em relação a uma cena do filme Laranja Mecânica, vejamos:


[...] ele chega girando uma tesoura o dedo. Puxa com a mão, após apalpar seus seios, a malha da roupa naquela mesma altura cortando-a com a tesoura. A sensação de que ele pode cortar o bico dos seios é indescritível e quase relaxamos na cadeira quando vemos que ele cortou apenas o tecido. O rosto de Alex completa a sensação de estranheza que a cena comporta. Melhor dizendo não propriamente o rosto mas a máscara que ele utiliza, pois ela é nada ,mais que um imenso e roliço pênis, avermelhado em sua ponta e na parte superior. O estupro acaba s fazendo visualmente quando ele se ajoelha perto do escritor.
(MENEZES, 1997.p.61)


Nesse trecho do filme de Kubrick, demonstra que mesmo que as cenas de violência sejam muito parecidas com a do conto de Fonseca, no primeiro a violência gratuita não se pretende justificar em relação ás personagens, posto que para elas não existe o conceito de moral e de ética, sendo assim as personagens cometem tais ações simplesmente por diversão, sem “saber” que são socialmente equivocadas, diferente do conto de Fonseca onde as personagens, sabem o que é “certo e errado”, no entanto tentam justificar seus atos de violência, usando como causa principal a baixa classe social em que vivem, sendo personagens sofridos e de baixa alto estima, tendo assim permissão velada de fazer com que as personagens de classes sociais elevadas sofram tão quão eles mesmos sofrem.

Logo Sartre afirma que nunca saímos do real para sermos livres, precisamos estar cem por cento conectados ao mundo, consciente e inconscientemente, já que o inconsciente sartriano é completamente diferente da definição freudiana, pois para Freud, os conteúdos inconscientes, apenas se encontravam disponíveis para a consciência, de forma disfarçada, através de sonhos e lapsos de linguagem, por exemplo, já para Sartre o inconsciente é o real enrustido em si, tanto um como o outro sabem exatamente o que querem ou desejam fazer, cabe ao individuo decidir racionalmente o caminho que deseja seguir, desta forma Jean-Paul Sartre em suas observações argumenta “ser-se livre não é fazermos aquilo que queremos, mas querer-se aquilo que se pode.”.

Também podemos notar a “angústia”, no conto em questão, quando observamos a citação “Puta que pariu, disse Zequinha. E vocês montados nessa baba tão aqui tocando punheta?” As personagens precisam e querem sair da situação em que se encontram, portanto sente-se na obrigação de tomar uma atitude, atitude esta que embora não seja nem um pouco considerada socialmente ética, é a única que estão acostumados a lidar, pois cresceram rodeados de desrespeito próprio e da sociedade, assim acreditam que devam retrucar na mesma moeda. Neste sentido, segundo Kierkegaard:


Sartre usa o termo "angústia" para descrever essa consciência da própria liberdade. Nós estamos livres porque nós não podemos confiar em um Deus ou na sociedade para justificar nossa ação ou para nos dizer o que e quem nós somos. Nós estamos condenados porque sem diretrizes absolutas, nós devemos sofrer a agonia de nossa tomada de decisão e a angustia de suas conseqüências. A angústia é, então, a consciência da própria liberdade... A angústia é a consciência dessa liberdade de escolha, a consciência da imprevisibilidade última do próprio comportamento... Uma pessoa à beira de um penhasco perigoso tem medo de cair, e sente angustia ao pensar que nada o impede de se jogar lá embaixo, de se lançar no abismo. O pensamento mais angustioso de todos é quando, num dado momento, nós não sabemos como nós iremos nos comportar no momento seguinte.
(2001)


Adiante Sartre descreve, sobre a vida humana como uma consciência infeliz, pois segundo o autor, o homem está sempre buscando se esquivar das possibilidades irrealizadas, dizendo sempre que não restaria uma segunda escolha a ser feita. Assim, ele ratifica que "Não podemos chegar a um estado em que não restem possibilidades irrealizadas", pois não teríamos liberdade e nem escolhas. Então definitivamente, “não há fuga possível da angústia da liberdade; fugir à responsabilidade é em si mesmo uma escolha” e “Não fazemos aquilo que queremos e, no entanto, somos responsáveis por aquilo que somos” (Sartre).

Já no conto de Fonseca, percebemos que não há uma fuga da responsabilidade por parte da quadrilha, posto que eles assumem o risco, e conhecem as conseqüências possíveis de seus atos, configurando-se assim uma escolha, mesmo que o leitor não consiga identificar uma conseqüência punitiva, realizada pela sociedade, mas sim um final que de “happy end”, nada tem, onde aparentemente não existe conseqüência para as atrocidades cometidas pelas personagens, o que torna o conto de um realismo extraordinário. Percebemos isto no fragmento em que Pereba e seus amigos chegam a casa e comemoram a passagem de Ano Novo e o assalto bem sucedido naquela madrugada:

Chegamos lá em cima cansados. Botei as ferramentas no pacote, as jóias e o dinheiro na saca e levei para o apartamento da preta velha.
Dona Candinha, eu disse, mostrando a saca, é coisa quente.
Pode deixar, meus filhos. Os homens aqui não vêm.
Subimos. Coloquei as garrafas e as comidas em cima de uma toalha no chão. Zequinha quis beber e eu não deixei. Vamos esperar o Pereba.
Quando o Pereba chegou, eu enchi os copos e disse, que o próximo ano seja melhor. Feliz Ano Novo. (2001)


Se fossemos analisar questões formalistas do conto de Rubem Fonseca, poderíamos afirmar que, Feliz Ano Novo se estrutura em torno de um assalto, numa noite festiva de réveillon e o “foco narrativo em primeira pessoa neste conto, concentra em sua personagem central/ narrador-eu, e que o narrador, narra o real, de sua ótica subjetiva, dentro de seu mundo conflituoso” (Amaline Boulus Issa Mussi). Todavia o que nos interessa neste momento é a ‘má fé’ das personagens, quando os mesmo tentam fugir da angústia fingindo que não são livres:


Eu queria ser rico, sair da merda em que estava metido! Tanta gente rica e eu fudido... Filha da puta. As bebidas, as comidas, as jóias, o dinheiro, tudo aquilo para eles era migalha. Tinham muito mais no banco. Para eles, nós não passávamos de três moscas no açucareiro.


No fragmento acima selecionado, retirado do conto Feliz Ano Novo verifica-se a questão da má fé, quando Mauricio tenta apaziguar a situação, dizendo de forma irônica para Pereba e seus comparsas, que poderiam comer e beber á vontade, no entanto essa atitude, na visão de Pereba, foi interpretada como um insulto, pois, por mais que a quadrilha roubasse, para as vítimas ricas, seria um valor muito insignificante, já que tinham mais a oferecer.

Às vezes nós escapamos da ansiedade fingindo que nós não estamos livres, que tomamos nossas decisões devido ao ambiente e justificamos os atos cometidos como inevitáveis, como quando fingimos que tais motivos são a causas de como nós agimos. Nós nos permitimos ser auto-enganados, especialmente quando isto toma a forma de responsabilizar as circunstâncias por nosso carma. Quando nós fingimos, nós agimos de má fé. A má fé é a tentativa de fugir da angústia fingindo que não somos livres. Tentamos nos convencer que as nossas atitudes e ações são determinadas pela nossa personalidade, por nossa situação, ou por qualquer outra coisa fora de nós mesmos. Porém, diz Sartre, o que é aprendido, ou os propósitos, as experiências passadas, não determinam o comportamento atual. Segundo ele, "nenhum motivo ou resolução passada determina o que fazemos agora". "Cada momento requer uma escolha nova ou renovada". (Sartre)

Podemos notar que para Sartre o homem sempre tenta se esconder atrás de seus próprios atos ao decorrer do tempo, tirando assim uma responsabilidade de suas próprias ações que cairia sobre si e com isso o homem se justifica usando como desculpa sua personalidade, porém ele prefere agir indiferente, ou seja, agindo de Má fé, pois para Sartre o homem é livre para realizar seus próprios atos, no entanto ele é responsável pela conseqüência dos mesmos, ou seja, está condenada a sua própria liberdade.

Em relação à liberdade, Sartre afirma que somos “condenados a ser livres”, e que é impossível deixarmos de usar tal liberdade no meio em que vivemos, pois não há plano divino que determine como temos que nos comportarmos diante de uma situação, pois somos conscientes do que fazer, e que não há nenhum determinismo, nada que nos force a agir de tal forma. Isso fica bem evidente no conto Feliz Ano Novo, pois as personagens durante toda a ação da obra estão completamente firmes e cientes do que fazem, desenhando assim, uma sociedade livre que não os impedem de nada. Para Rubem Queiroz Cobra:


No entender de Sartre, estamos "condenados à liberdade"; não há limite para nossa liberdade, exceto o de que "não somos livres para deixarmos de sermos livres." Porque não há nenhum Deus e, portanto não há qualquer plano divino que determine o que deve acontecer, não há nenhum determinismo. O homem é livre. Nada o força a fazer o que faz. "Nós estamos sozinhos, sem desculpas." O homem não pode desculpar sua ação dizendo que está forçado por circunstâncias ou movido pela paixão ou determinado de alguma maneira a fazer o que faz. (2001)


Em relação à figura do homem, destacamos que estamos sempre querendo preencher o "nada". Esta questão da eterna busca é a essência do nosso ser consciente; queremos nos transformar em coisas em vez de permanecer perpetuamente num estado em que as possibilidades estão sempre irrealizadas. De fato se fizermos uma reflexão observaríamos que no conto Feliz Ano Novo as personagens afloram uma inquietação em relação ao estado deplorável em que se encontram para demonstrar essa insatisfação, eles fazem comentários em relação às ‘madames granfas’, vejamos:


Acendemos uns baseados e ficamos vendo a novela. Merda. Mudamos de canal, prum bang-bang, Outra bosta. As madames granfas tão todas de roupa nova, vão entrar o ano novo dançando com os braços pro alto, já viu como as branquelas dançam? Levantam os braços pro alto, acho que é pra mostrar o sovaco, elas querem mesmo é mostrar a boceta ,mas não têm culhão e mostram o sovaco. Todas corneiam os maridos. Você sabia que a vida delas é dar a xoxota por aí? Pena que não tão dando pra gente, disse Pereba. Ele falava devagar, gozador, cansado, doente. Pereba, você não tem dentes, é vesgo, preto e pobre, você acha que as madames vão dar pra você? Ô Pereba, o máximo que você pode fazer é tocar uma punheta. Fecha os olhos e manda brasa. (2001)

Esse trecho do conto define todas as personagens, pois na vida, o homem se compromete, desenha seu próprio retrato e não há mais nada senão esse retrato. Nossas ilusões e imaginações ao nosso respeito, sobre o que poderíamos ter sido, são decepções auto-infligidas.

Contudo Sartre acredita na capacidade plena de todo indivíduo de ter que escolher suas ações, valores e objetivos de vida. Em função disso concluímos que não existe destino, e que somos completamente livres. Entretanto, a liberdade nos arremete a uma responsabilidade, e esta por sua vez, atinge todos ao nosso redor. E foi nesse sentido que direcionamos a análise do conto Feliz Ano Novo de Rubem Fonseca.


Autoria: Artur Travisani Rosa; Atílio Catosso Salles; Érica dos Reis de Souza; Kézia Souza


Trabalho de Teoria Literária II


Referências bibliográficas

CARDOSO, Myriam Limoeiro. Ideologia do desenvolvimento. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1975.

Cobra, Rubem Q. - Jean Paul Sartre. Filosofia Contemporânea, Cobra Pages - www.cobra.pages.nom.br, Internet, 2001 ("www.geocities.com/cobra_pages" é "Mirror Site" de COBRA.PAGES).

FONSECA, Rubem. Feliz Ano Novo. In: MORICONI, Ítalo. (org.). Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.

MENEZES, Paulo. Laranja Mecânica: violência ou violação? Tempo Social; Rev. Sociol. USP, S. Paulo, 9(2): 53-77, outubro de
1997.

SILVA, Deonísio da. O Caso Rubem Fonseca - violência e erotismo em Feliz Ano Novo. São Paulo: Alfa-Ômega, 1983.


Sites:

http://www.cobra.pages.nom.br/fcp-sartre.html -

http://www.releituras.com/rfonseca_feliz.asp

http:// www.meiapalavra.com.br/showthread.php?tid

http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0202/05.htm

2 comentários:

Barattynha disse...

Parabéns a todos! Ficou muito bom!

Ricardo disse...

"Os homens não precisam de um motivo, apenas de uma boa desculpa" - retirado do primeiro episódio de Millennium.